Primeiro, um pouco de lógica fria sobre o
famigerado conceito de normalidade, que significa simplesmente prevalência
estatística, maior quantidade, e não necessariamente algo realmente melhor do
que não-normalidade.
Mesmo na natureza, a prevalência das espécies, em
suas variantes mais bem sucedidas (logo tratadas por normais), não significa
que estas sejam necessariamente "melhores" (lato sensu) do que as que
sucumbem. São apenas mais bem preparadas para sobreviver às agruras.
Entre humanos, pertencer à normalidade geralmente
induz àquele senso de manada, de modo que cada membro do grupo se sente mais
forte e protegido, por compartilhar das características prevalentes nos demais
membros.
Induz também a uma confortável sensação de segurança
para assumir e afirmar que normalidade seja bom e que não-normalidade seja
ruim, com direito à eventual prática de críticas e
recriminações dirigidas aos "não-normais".
Para
nós, rotulados "não-normais", o amor que dedicamos às pessoas
(intenso, bem ao nosso modo) exige uma reciprocidade que se expressaria por
consideração, a qual, por sua vez, se expressaria através da compreensão dos
nossos valores de certo ou errado, justo ou injusto (e outros), aplicados a todas
as nossas interações com o mundo dito normal.
Percorrendo
o caminho inverso, quando nossas interações são vistas ou julgadas sem a
aplicação desses valores (que para nós são absolutos, independem de opinião),
sentimo-nos incompreendidos, desconsiderados, sem reciprocidade, sem amor.
Enganos das pessoas "não-normais"
Até
chegarmos
à compreensão clara daquilo que somos, tendemos a assentir quando nos dizem que
são intensos e exagerados os nossos modos de receber, realizar, sentir e reagir
em nossas interações com as pessoas assumidamente "normais".
Mas,
ao assentir, implicitamente aceitamos a pecha de vilões, monstros, remoedores,
criaturas cruéis, esquisitas perante os inocentes "normais".
Em
relacionamentos sérios, passamos a estar em débito com eles, não importa o que façamos,
nem o quanto, nem o quão bem façamos.
No
mínimo, nada será o suficiente, porque nossa necessidade de fazer somente o melhor se contrapõe à
"autoindulgência normal" e à "necessidade normal" de autoafirmação.
Via
de regra, passamos a ser os problemas que os "normais" magnanimamente acolheram
nas suas vidas de merda, sem perceberem o quanto mais elas federiam, não fossem
as nossas humildes e malfadadas presenças e esforços na direção de lhes
propiciar alguma evolução ao menos em termos de qualidade humana.
Muitas
vezes, nossas próprias famílias nos apresentam ou entregam (aos magnânimos normais) como
verdadeiros problemas dos quais se estão livrando.
Então,
enquanto não adquirimos aquela autovisão clara, mas após longos períodos de conflitos,
de situações não resolvidas, de mágoas e inconformismos guardados, geralmente aceitamos
as culpas e os remorsos que nos impingem.
Não renegamos
nosso modo de ver, sentir e ser.
Assim, essa aceitação maltrata parte da nossa essência.
Assim, essa aceitação maltrata parte da nossa essência.
Por
necessidade de viver uma vida minimamente suportável em meio aos
"normais", tentamos ver a nós mesmos sob a ótica da normalidade, e passamos
a tentar nos modificar, nos adaptar, criar interfaces aceitáveis para o mundo
normal.
Este
engano nos
leva a atravessar longos períodos da vida, oscilando entre o crer que
conseguimos nos modificar, e o constatar que "fracassamos" nessa
tentativa.
A cada
nova "derrota", voltamos com a nossa autoestima destroçada, encaramos as recriminações
que garantidamente virão, e somos magnanimamente perdoados e aceitos pelos
"normais" que nos "acolheram" em suas vidas.
Renascem
as esperanças de finalmente lograr o entendimento justo, correto, decente,
compadecido, a nos redimir de cada evento que nos esfarrapou por dentro.
Mas logo
percebemos que seremos perdoados e aceitos sempre condicionalmente, ou seja,
desde que tentemos "nos modificar", quem sabe até através de
tratamento médico.
Eis minha
melhor resposta a isto: à puta madre que os pariu!
Finalmente, se ainda não estivermos dopados,
drogados, doentes, ou mortos, chegaremos ao entendimento cristalino daquilo que
somos, daquilo que não somos, daquilo que nunca seremos.
Tristes corolários
Normais,
não-normais, tanto faz...
Em essência,
todas são pessoas boas.
Porém,
jamais os seres humanos normais compreenderão ou aceitarão nossos modos
intensos de receber, realizar, sentir e reagir em nossas interações com o
mundo, independendo do quanto nos tenhamos violentado por toda uma vida, para
tentar ser "normais".
Não há como nos tornarmos "normais" sem deixarmos de ser quem somos.
O amor
àqueles de quem esperávamos, um dia, uma percepção cristalina de quem somos...
esse amor nos prende dolorosamente a cada evento que nos esfarrapou por dentro.
Deixar
de sofrer e de fazer sofrer exige não sentir mais nada...
Isto não é um libelo.
Raras exceções existem.
Raras exceções existem.
abril - maio, 2013