Vinha refletindo há alguns dias sobre as fases profissionais pelas quais passamos, ao longo dos anos.
Neste domingo, logo após o almoço, conversava com minha esposa, considerando com certo amargor a regra comum dos disparates, mormente neste país, em face do quanto recebemos ou deixamos de receber pelo valor agregado de conhecimento, tempo, esforço intelectual, aplicados à realização do nosso trabalho.
Ainda falávamos disto, quando bateram palmas à nossa porta.
Campainha desligada há tempos, insistiram bastante.
Não era o habitual grupo de carolas de final de semana, sempre ansiosas por catequizar moradores incautos, mas sim um casal.
Quando cheguei à parte da frente da casa, já falavam quase que simultaneamente com a minha esposa.
Enquanto permanecia no limiar da porta de acesso ao jardim, aguardando que ela descobrisse de que se tratava, observei aquelas pessoas ainda jovens, 25 a 35 anos, vestidas humildemente, expressões cansadas sob o sol, um carrinho de mão com algumas tralhas, estacionado no meio-fio, uma cadela preta que os acompanhava.
Ouvi dizerem mais de uma vez que "eram pessoas de bem",
evidenciando a consciência de que a sua condição pudesse provocar julgamento preconceituoso.
Jussára me explicou que queriam limpar a enorme calçada, remover aqueles tufos de mato persistentes, que constituem realmente um problema.
Pediam em troca "qualquer ajuda" em dinheiro ou em gêneros.
Alguma coisa me incomodou, naquela situação.
Preferi não aceitar a oferta.
Minha esposa se aproximou para conversarmos melhor.
Um silêncio de expectativa aguardava no outro lado do portão.
Mantive a recusa, como se pudesse explicar meus inexplicáveis motivos, transparecendo talvez minha expressão de "caso encerrado".
Já me voltando para o interior da casa, percebo a moça, muda, curvando a cabeça para frente, deixando ambos os braços caírem e baterem contra o corpo, num gesto desacorçoado de quem desiste diante de mais uma negativa.
Alguma coisa, agora em mim mesmo, me incomodou.
Não precisei dizer à minha esposa...
Fomos até o portão e concordamos que fizessem a limpeza de calçada, combinando um valor compatível com as possibilidades do momento.
Suas faces e palavras agradecidas expressavam a importância daquela remuneração modesta, pelo trabalho relativamente pesado que estavam por realizar.
Em alguns segundos de uma interação verbal múltipla e simultânea (algo que foge à minha capacidade), Jussára se inteirou de que "moram" a céu aberto, em um terreno próximo, pertencente à concessionária de energia elétrica, onde cuidam também de oito ou nove cães.
Pensativos, saímos dali para que trabalhassem em paz.
Após um tempo relativamente longo, concluíram a tarefa com esmero, receberam o valor combinado e uma pequena ajuda em gêneros e ração para os cães.
Mais uma vez agradeceram efusivamente, e lá se foram rua acima, acompanhados pela cadela Bolinha, talvez rumo ao terreno-lar, talvez ainda procurando outras calçadas a limpar.
Seres que transitam entre o visível e o invisível, na metrópole e na vida, na dimensão mais dura que os disparates podem assumir, vieram me dizer que amargor é puro exagero.
19/03/2012