Mais a visão se aprofunda,
mais estrelas se percebem,
na escuridão...

25 de setembro de 2019

Melhor idade


Civismo e respeito

Você passa a vida dedicando respeito a tudo e a todos, pautado unicamente em seus princípios morais, éticos, cívicos, religiosos até.

Nem faz questão de utilizar diversos direitos preferenciais, guardando para si o inconformismo em face de criaturas que se sentem espertas ao usurpá-los (exceto quando o fazem em detrimento de pessoas que realmente precisem deles).

Mesmo assim, nas suas atividades cotidianas, passa a topar com criaturas-espertas, freqüentemente ansiosas por criar problemas com quem elas "pensam que podem".

Você sabe que elas "ainda não podem".
Sabe que ainda tem o poder de trucidar, por palavras ou de fato, quaisquer criaturas-espertas.

Mas, como nunca agiu assim com quaisquer seres vivos, você, a cada novo evento, recorre aos seus princípios e autocontrole, evitando o confronto.

E a criatura-esperta vai embora incólume e satisfeita, supondo que você nada fez "porque não poderia fazer", e não "porque não quis fazer".


Previdência e espoliação

Você trabalha "de carteira assinada", ininterruptamente, desde os 13 anos de idade.

Evolui profissionalmente, atingindo condição que lhe "permite" pagar a previdência social (segundo o salário máximo de contribuição) e ser assaltado pela alíquota máxima do IRPF.

Você espera nem precisar da aposentadoria.
Mas, perto dos 60, conclui que precisará dela.

Então, descobre que um congresso podre formulou (e um gramcista miserável sancionou) a lei 9.876/99, alterando as regras do jogo durante o jogo, lesando sem escrúpulos quem já pagava a previdência há décadas.

Por uma simples penada desse enviado dos infernos, a sua aposentadoria (debochadamente tratada por "benefício") passou a ser calculada com base nas 180 últimas contribuições, desconsiderando-se outras centenas delas, de valores elevados, pagas na fase mais bem remunerada de sua vida profissional.

Analisando a possibilidade de fazer prevalecerem os seus direitos, você decide "deixar quieto", em face de um sistema judiciário preponderantemente conivente com o estado espoliador, e pela certeza de uma excruciante espera por decisão judicial.

Assim, para garantir uma vida digna, resta prosseguir trabalhando e agradecendo a Deus, que o abençoou com saúde e múltiplas competências.


Ninhos escassos

Você reside em uma casa, em uma metrópole.

Aproximando-se a época de mudar para um apartamento, descobre que praticamente não existem mais os imóveis "apenas e simplesmente" confortáveis, agradáveis e seguros.

Na quase totalidade dos seus empreendimentos, as construtoras descobriram que, independendo dos seus perfis econômico-sociais e etários, todas as pessoas desejam arcar com custos condominiais afeitos a "comodidades indispensáveis", tais como salões de festas, áreas de lazer, piscinas, playgrounds, quadras poliesportivas, academias, saunas, salões de jogos, espaços gourmet e o que mais vierem a inventar.

Então, você desiste da idéia e passa a considerar a sua casa com mais carinho ainda, persistindo em cuidar da sua preservação pelo maior tempo possível.


Aridez progressiva

O mundo lhe parece mais árido.

Encolheu o círculo de pessoas com quem você apreciava conversar, trocar idéias reciprocamente enriquecedoras.

Parte dessas pessoas desapareceu.
Parte se modificou, mergulhou em estados alterados, perdeu aptidão ou interesse, abandonou contatos genuinamente produtivos.

E esse seu círculo não se renovou, principalmente devido ao empobrecimento endêmico da comunicação, agora baseada em contatos curtos, informações rápida e massivamente compartilhadas, tristemente mal aproveitadas, mal rastreáveis, mal lastreadas.


Comunicação verbal

Surgem dificuldades para entender o que dizem inúmeras pessoas com quem você tem de interagir.

Não porque esteja ficando surdo ou lerdo.

Na verdade, a sua mente não decodifica bem o que você ouve, porque "os seus ouvidos padecem de problemas de dicção".

De nada valem a fluência em outros idiomas, o domínio perfeito do seu idioma nativo, diante da crescente ubiqüidade de pronúncias destrambelhadas, entonações descabidas, ênfases deslocadas, rajadas disparadas por quem parece haver negligenciado a dose diária de clonazepan.

Ninguém mais se preocupa com ser bem compreendido.
Vale mais encontrar uma identidade verbal inconfundível, por mais inepta que pareça.

Então, a cada nova situação, ou você não dá importância à mensagem mal emitida, ou passa por surdo e lerdo, pedindo à pessoa que repita a frase (e rezando para que o faça de maneira compreensível).


Ruídos

Diminui ainda mais a sua tolerância a ruídos.

E aumentam ainda mais a quantidade e os tipos de fontes de ruídos que se aproximam de você, ou das quais precise se aproximar para atender às suas atividades normais.

Pessoas falando ao celular, como se não precisassem dele para ser ouvidas.

Pessoas "conversando" frente a frente, como se estivessem à distância de uma quadra.

Locutores de lojas e supermercados, correndo o risco de serem empalados com os seus microfones.

Veículos desregulados, adulterados, mal cuidados, extremamente ruidosos, incitando o seu desejo de possuir uma bazuca.

Imbecis, passando lentamente com os seus "carros incrementados", ouvindo "música" medíocre, num volume que faz vibrarem as janelas da sua casa, trazendo à sua mente a oração em que pede a Deus que os torne surdos e portadores de graves seqüelas neurológicas.


Acidente ambulante

Você se torna autor reincidente de crimes culposos, dentro do próprio lar.

Coisas menores, que às vezes caem das mãos porque você supôs havê-las segurado direito.

Coisas maiores, que às vezes tombam ou desabam sozinhas, porque você supôs havê-las posicionado corretamente, ou porque foram projetadas por designers que prezam o bonitinho acima da funcionalidade.

Objetos do seu ambiente, que decidem sair dos seus lugares habituais, obstruir o seu caminho, provocar esbarrões, tropeções, palavrões.

Aparelhos e utensílios anteriormente bem comportados, que passam a não funcionar direito (ou até sucumbem) em suas mãos, talvez ressentidos pelo excesso de força, ou pela falta de jeito ou de paciência.


Reserva ambiental

Gradualmente, você se transforma em área de preservação da biodiversidade.

À parte de distúrbios que possam debilitar o seu sistema imunológico, várias "espécies ameaçadas" tentarão vencê-lo e conquistar sítios em seu organismo.

Seres inocentes, como bactérias, cocos, vírus e congêneres.

A sua própria microbiota poderá se insurgir, causando desarranjos de toda sorte.


System auto-shut off

Começam a ocorrer deficiências e imprecisões, em atividades que sempre transcorreram perfeitamente.

Um dos principais culpados, o seu arcabouço musculoesquelético, possivelmente o obrigará também a abandonar hobbies tais como tocar um instrumento musical, manusear ferramentas com destreza, ou o que seja.

Os seus reflexos ainda perfeitos poderão não compensar a sua visão não mais tão perfeita, de modo que o cuidado terá de ser redobrado em quase tudo que fizer.

Em reverência às suas antigas façanhas atléticas, você procura manter-se ainda como um ser em movimento.


Ciclicamente...

Perseverando em lapidar a mente plena, as palavras assertivas, as ações conseqüentes, a emoção transmutada em aprendizado, o milenário espírito viajante, você percebe que, enfim, toda a sua essência caminha lentamente, rumo a diluir-se novamente no tempo.


Janeiro - Setembro 2019


Textos relacionados: Num estalar de dedos; Viajante

15 de setembro de 2019

Não me ignore


(Antes de ler este texto, clique na imagem, observe, reflita um pouco.)

Sabe aqueles textos (talvez este, inclusive) que você deveria ler atentamente, ao menos em respeito e apreço por quem dedicou tempo e neurônios a lhe escrever, mas preferiu "ler diagonalmente", captando apenas fragmentos do conteúdo, chegando a conclusões erradas, ou a conclusão nenhuma?

Sabe aquelas conversas em que você praticou "audição seletiva", desconsiderando palavras "pouco relevantes", mesmo quando enfatizadas pelo interlocutor?

Sabe aquelas pequenas contradições que lhe escaparam, evidenciando certas "mentiras brancas" desnecessárias?

Sabe aqueles comentários atropeladores, emitidos antes de ouvir toda a frase, porque "você já sabia" o que a outra pessoa iria dizer?

Sabe aquela "irritação sem motivos", que ocasionalmente certas pessoas "metódicas demais" mal disfarçam ao conversar com você?

Sabe aquele trecho de bula que você não leu, no afã de se automedicar rapidamente?

Sabe aquele manual que você nem abriu, antes de tentar usar o novo aparelho eletrônico que, infelizmente, "se recusou" a funcionar direito?

Sabe aquele roteiro técnico que você decidiu executar baseando-se somente nas figuras, desdenhando instruções textuais que engenheiros "minuciosos demais" formularam a partir de medições, cálculos, normas e conhecimentos técnicos "pouco importantes"?

Pois é...
Eu resido em todos esses eventos e contextos
e em muitos mais...

Tenho enorme valor para quem preza clareza, rigor, precisão, verdade, atributos sem os quais nada de útil e duradouro se constrói.

Posso contribuir para:

- evitar enganos;
- preservar a sua segurança e a de terceiros;
- enriquecer o seu relacionamento com as pessoas;
- aprimorar a sua cultura e o seu aprendizado de vida;
- e muito mais...

E posso também causar:

- frustração imediata e posterior;
- progressivo desalento naqueles que se comunicam com você;
- danos, prejuízos e até tragédias;
- e muito mais...

Não me ignore.
Meu nome é detalhe.

Janeiro - Agosto 2019

7 de setembro de 2019

Roteiro da felicidade...


Naquele tempo...

As comunicações transitavam por labirintos de linhas telefônicas, extensões, ramais, troncos-chave.

Na empresa, as chamadas eram recebidas por uma mesa de PBX.
A telefonista as transferia para a secretária que, devidamente orientada, "filtrava" aquelas que eu não gostaria de atender.

Os problemas a resolver chegavam continuamente à minha "caixa de entrada" e era necessário entregar soluções em minha "caixa de saída".

Nas reuniões, um sofrimento, era direito de qualquer participante ter a certeza de estar sendo ouvido e compreendido.

Quase insuportáveis o tempo e a atenção despendidos em leitura, escrita, telefonemas, contatos presenciais.

Sentia-me oprimido por aquilo tudo.


Com a chegada dos celulares...

As pessoas ganharam acesso direto, umas às outras.

Em vez de escrever, muitas já preferiam "economizar tempo" resolvendo assuntos diretamente por telefone, o que me dispensava da tarefa de leitura e lhes dava a vantagem de não deixar registrada alguma assertiva, talvez mal formulada, que quisessem desdizer posteriormente.

E o serviço de SMS, embora mais imediatista, não demandava respostas muito elaboradas.

Passei a poder me desconcentrar durante as reuniões, a pretexto de atender a chamadas de celular.

Havia, sim, os intransigentes, como certo consultor de TI, sujeito irascível, que chegou a se retirar de reuniões, apenas porque eu atendia a algumas chamadas demoradas.


Com a chegada da Internet...

O serviço de emails permitia postergar leituras e respostas "mais complicadas".


Finalmente...

Vieram os smartphones, com os seus aplicativos de comunicação, Internet, redes sociais e tudo o mais.

Essas tecnologias me libertaram.

Ninguém mais exige, ou faz por merecer, atenção exclusiva.

Agora, sou capaz de conversar com uma ou mais pessoas, presencialmente ou por telefone, enquanto troco mensagens pelo WhatsApp, acompanho as redes sociais, leio notícias etc.

Ademais, posso separar "para ler depois" (ou "deixar pra lá", por decurso de prazo) tudo o que possa exigir maior empenho mental ou emocional, esperando que as pessoas, por consideração ou esquecimento, acabem nem me cobrando as respostas.


Dispersivo?
Displicente?
Negligente?
Autocêntrico?
Pouco importa.
Hoje, sou uma pessoa feliz!

Tema: Novembro 2018 - Texto: Julho 2019
©Alfredo Cyrino / Indigo Virgo®



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