Mais a visão se aprofunda,
mais estrelas se percebem,
na escuridão...

15 de janeiro de 2014

2537 - 12/09 - 19:53


Desperta de forma estranha, nenhuma noção sobre quanto tempo permaneceu dormindo, como se houvesse sido simplesmente desligado e religado.

Meio aturdido, um pouco de náusea, movimentos lerdos, respiração retomando ritmo normal.

Espécie de poltrona-cama, forma de concha ovalada, move-se lentamente para a posição quase vertical, até seus pés tocarem o piso morno.

O ambiente nada amplo sugere uma cápsula cilíndrica vertical, paredes transparentes na maior parte do perímetro, tornando-se gradualmente menos embaçadas.

Lá fora, luz de sol poente, quase rasante, em tom muito claro, diferente do avermelhado que sempre apreciou.

Paisagem lembrando a de uma praça, área urbana com imensos espaços abertos, predominância de cores claras, já sombreadas, ponteada por algumas distantes fachadas espelhadas, em cor azul.

Nenhum som proveniente do exterior, nenhum veículo transitando, somente algumas pessoas caminhando calmamente, altas, esguias, trajando branco.

Desce um grande painel vítreo, escuro, posicionando-se à sua frente.
Na parte inferior, dois contornos de mãos, iluminados em vermelho pulsante, o convidam a tocá-los.

Coloca as mãos espalmadas sobre os contornos, que coincidem perfeitamente com elas, tornando-se verdes e desaparecendo a seguir.

O painel inteiro se ilumina em azul claro, e nada mais acontece.
Talvez se trate de um computador.
Talvez a MS tenha alterado o tom das execráveis telas azuis...

Ainda sem vontade de interagir com quaisquer "sistemas" (ou sabe-se lá o que virá a se apresentar), afasta-se um pouco do painel e entrega seu cansaço à concha-poltrona, tentando compreender a situação.

Contrariando sua expectativa, o painel logo passa a exibir imagens, familiares, mas em overlays confusos.

Vê seres com quem conviveu ou interagiu, locais em que transitou, residiu, estudou, trabalhou, desenvolveu diversas atividades; incontáveis pessoas utilizando sistemas lógicos que desenvolveu; fragmentos de sua vida feliz, com sua mulher e seus animais.

Enfim, uma história resumida, sem ordem cronológica, talvez projeções de sua mente, misturando lembranças remotas e recentes.

Em seguida, apresenta-se um texto, em cujo final aparece sua assinatura:

Termo de anuência

Pelo presente termo, eu, .................., portador do Documento de Identificação Global No ........, concordo em participar do ECTH - Experimento Cápsulas do Tempo Humanas.

Declaro estar ciente dos riscos envolvidos nos processos de hibernação induzida, desaceleração, suspensão e reativação de metabolismo, eximindo a Entidade Condutora do Experimento de quaisquer responsabilidades quanto a eventuais incidentes ou danos, de quaisquer naturezas, resultantes de minha participação no Experimento.

Declaro, ainda, concordar que a data de minha reativação seja estabelecida pela Entidade Condutora do Experimento, unilateralmente e sigilosamente (sem o meu conhecimento).

Registro os motivos pelos quais me inscrevo para participação no Experimento:

"Considero-me total e irremediavelmente inadequado à convivência com os demais seres humanos, bons ou maus, amados ou não. Não desejo causar mal, nem às pessoas, nem a mim mesmo."

Sendo esta a livre e espontânea expressão da verdade e de minha vontade,

01.09.2015- Assinatura.
05.09.2015- Participação aprovada pela ECE.

Ultima cena, vê-se conduzido ao interior daquele recinto, onde se acomoda tranquilamente e observa um grande display, no teto, indicando 12.09.2015 - 19:53.

O painel se apaga e o grande display do teto passa a indicar intermitentemente o ano: 2537.

Deveria crer nisto?
Caso se trate de um experimento real e bem sucedido, como descrito no tal Termo de Anuência, pode ter permanecido ali por uns 522 anos!

Pensa nas chances de haver sido apenas anestesiado durante algumas horas e estar participando, na verdade, de algum estudo comportamental de imersão total, que exponha pessoas a situações e cenários sugerindo haverem-se tornado peças arqueológicas vivas, mais de meio milênio à frente de sua "época original".

Lembra-se inevitavelmente do antológico "The Truman Show" (1998), de Andrew Niccol, dirigido por Peter Weir, com Jim Carrey no papel principal.

Mas, analisando diversos detalhes da situação atual, a hipótese de "realidade simulada" lhe parece assustadoramente improvável.

Não imagina quais das suas capacidades poderiam ter sido afetadas, supostamente submetido durante tanto tempo a um incógnito processo de hibernação induzida.
Não percebe, por enquanto, mudanças em seu modo de pensar e de ser.

Ainda não realizou as implicações de tudo aquilo, nem assimilou a possibilidade de não existirem mais as poucas pessoas que conheceu e amou.

Procurando visitar pensamentos e sentimentos que o dominavam quando tomou a decisão (assim crê) de participar do experimento, atravessa uma tempestade de flashes, portadores de vívidos sentimentos e memórias de suas reações intensas, inconformadas, diante de perdas, injustiça, desconsideração, deboche, não-reciprocidade, desonestidade, esperteza premiada, egoísmo, irresponsabilidade, dissimulação, desfaçatez, furtos intelectuais e materiais, sorrateiros ou descarados, ignorância cultivada, futilidade, agressão gratuita, morbidez, maldade, brutalidade, barbárie.

Sim, foi real.
Profundo desalento.

Anoiteceu...
Não sabe se pode sair de dentro de si mesmo, ou daquela cápsula.
Não sabe se quer sair, circular, interagir, descobrir mais.
Não alimenta boas expectativas com relação a uma "nova" humanidade.

Talvez lhe permitam continuar a ser apenas um espécime pensante, quieto, ainda sem causar mal a ninguém, hibernando ali, indefinidamente.

No teto, o grande display agora indica: 12.09.2537 - 19:53.
Resta-lhe acreditar nele...

(Texto original: 12.09.2005)
©Alfredo Cyrino / Indigo Virgo®

12 de janeiro de 2014

Deixei-me


Deixei-me tudo sentir,
guardar, revoltar,
imergir no tempo,
parar de sorrir,
chorar, urrar,
ferir, me ferir.

Deixei-me dormir,
querer não acordar.
Deixei-me, insone,
querer sumir.

Deixei-me crer,
dizer para crer,
sem compreender
nuvens e sombras.

Deixei-me partir,
tanto caminhar,
perder, cair, levantar,
claudicar, nem ligar,
desacorçoar, voltar,
querer ficar.

Deixei-me despertar, 
compreender,
ressurgir, 
reencontrar a paz,
tornar a viver,
por te amar.

(Dedicado à minha esposa, Jussára)

novembro 2013 - janeiro 2014

5 de janeiro de 2014

Sou


Este meu imperdoável eu, crítico,
intenso, inconformado, analítico.

Tudo o que fiz, desfiz,
deixei de fazer.
Tudo o que disse, ouvi,
não compreendi,
não escutei.
Tudo o que não vi,
ou vislumbrei.
Todo o meu descrer,
e minha fé.

Este querer ser sem ser assim.
Tudo o que fui, seria, serei,
o que sempre soube, o que não sei.
Tudo o que aprendi, ensinei,
o que nunca aprenderei. 
Todo o amor aos que não seriam
sem mim.

Dedicado a você, Jussára, e à nossa família de sencientes: Princesa, Chinin, Pierre, Puff, Fofinha, Pretinho, Preto, Dezenas de Beija-Flores, Freddy, Píupi, 7 Anões, Nega Maluca, Menina, Bia, Pituco, Dóbi, Tico, Kate, Vivi, Tuco, Babi, Branco, Nino, Boneca, Dick, Rubéola, Marú... e tantos outros.

Dezembro 2013 - Janeiro 2014
©Alfredo Cyrino / Indigo Virgo®

Meio de madrugada (vislumbres)


Caminhei lentamente,
por entre árvores
e pela madrugada de uma praça,
vislumbrando espectros e devas.

Em pensamento,
lhes perguntei tantas coisas...
Por que ser assim?
Como deixar de ser quem sou?

Sem respostas,
suas faces tristes não me encaravam.
Mas, meu peito queria saber, queria saber!

Como a indagar também,
voltaram-se para o céu, apontando com as mãos abertas,
convidando-me a enxergar algo inexpugnável para mim,
e desapareceram como névoa que se desfaz.

Veio até mim o velho e amigo cão amarelo.
Encostou sua cabeça em minha mão direita,
fitando-me com seus grandes olhos,
como a dizer que também os vira.
Cães tudo vêem.
Cães sempre me compreenderam.

Prossegui pela ruela escura, quase coberta pelo mato,
jogando alimentos aos pássaros que não estavam lá.

Conversei com uma boa e doce alma,
mal ouvindo suas palavras sobre assuntos leves.
Percebeu meus olhos marejados,
despediu-se logo de mim.

Cão amarelo descendo comigo, até o portão,
comovendo-me o esforço de sua breve companhia,
antevendo seu caminhar, praça acima,
já difícil sob o peso da idade.

Permanecemos na calçada por um tempo,
eu e o cão, estáticos,
sem vislumbres, sem ninguém para nos falar
dos motivos, dos mistérios, do nonsense,
e da efemeridade da vida.

(In memoriam - Nino, o cão amarelo, faleceu na madrugada de 23.10.2013)

janeiro 2013 - dezembro 2013
©Alfredo Cyrino / Indigo Virgo®